IV
Como eu dizia antes de ser interrompido pela linearidade da narrativa, e depois pela sua própria irregularidade, um dia ela preparou tudo para fugir e, em seu caminho pelas ruas de Medina, conheceu o Senhor José de Aritmética, um filósofo, filólogo e fisiologista luso-grego com nariz femininamente arrebitado e voz desnecessariamente macia. O Senhor José de Aritmética era calvinista, daqueles que raramente se vê, mesmo em terras da coroa, nos tempos do rei Charles, o Tradutor.
A moça recorreu a ele, em desespero, e pediu abrigo e comida. Em troca, trabalharia na casa dele até que a primeira embarcação partisse para a Inglaterra. Os tempos eram de crise na Arábia, e apenas uma embarcação semanal partia, aos sábados, e chegava em Manchester toda quarta-feira, na hora do culto por que há tanto tempo ela ansiava. Viajaria com a melhor de suas roupas, para, já no desembarque, correr para a igreja e matar a saudade de Deus que tanto a afligia. Em seguida, partiria para York, onde moravam seus pais e irmãos.
Como o leitor está acostumado a Daniel Defoe, devo apenas dizer que a viagem de volta foi uma das passagens tranqüilas da história, e a chegada a Manchester não trouxe grandes conseqüências, mas o caminho para York e sua chegada iniciaram a segunda parte da história. A essa altura, Defoe pensava intitular sua história "A atribulada vida de Zélia DoBig, que: viajou o mundo vendendo cocadas, foi feita prisioneira de um mouro por doze anos, voltou à sua cidade natal, onde descobriu sumidos os pais e os irmãos, e iniciou sua jornada de circunavegação em busca deles, que por três e vinte anos durou, até que foi sugada com todo o navio por um redemoinho nas Índias, e finalmente chegou a encontrá-los no centro da terra, três vezes oito anos depois, onde viveram e fundaram uma colônia, vindo a morrer com completos quatro vezes vinte anos, mais um, depois de se casar com um dos naufragados de seu navio, ter com ele três filhas e um filho, seguida por breve narrativa de como seu filho, de nome Arne Saknussem, viajou de volta à superfície, estabeleceu-se na Escandinávia, e descobriu um caminho alternativo para a casa de seus pais, através de uma montanha, narradas por seus protagonistas".
Chega a hora de interromper novamente a narrativa, pois qualquer linha reta certamente entedia o leitor e causa sono - e não é dormindo que quero que ele me leia, pois as histórias, se boas sonhadas, são melhores ainda imaginadas, quando é a razão, e não o subconsciente, que as completa com os detalhes que o narrador desleixado não entregou - penso no meu leitor com bons modos e o maior dos otimismos. Creio que sua razão não colocaria rabo de coelho nos personagens, mas que, em seus sonhos, o rabo de coelho seria bem-vindo. E desta vez interrompo não para retomar a história de nosso protagonista, mas de como o acaso o ajudou, incluindo na história, sem consentimento de seu narrador, um personagem que se tornou, durante a Rinha Anual de Dragões, de grande ajuda para nosso vice-escolhido. Seu nome, coincidentemente ou não, era Arne Saknussem, que nem de longe é um nome comum em País, e trata-se do único registro de alguém com esse nome em toda a história de País.
Sucedeu o seguinte:
Antes, aliás, a dúvida que tanto atormenta quem conta histórias. Quando duas coisas ocorrem ao mesmo tempo, qual deve ser narrada antes? Porque, se dois fatos estão juntos, é justo que os exponhamos da maneira mais simultânea possivel, o que significaria algo mais ou menos assim:

Não quero, entretanto, dar trabalho a meu leitor, pobre dele, para decifrar o que as sobreposições significam. Decido aqui, e por puro interesse meu, talvez contra a vontade do leitor, que narro primeiro a parte menos importante da história, para que ele se prenda à narrativa até, pelo menos, o próximo capítulo. Sigamos com Arne Saknussem, portanto, antes de continuar com Marcos. Apenas peço que não se esqueçam do rosto de Marcos, e de que esta história é dele, mais que de qualquer outro personagem.
Bem, como narrou Defoe, Saknussem descobriu um caminho alternativo para a terra de seus pais. A entrada, por uma montanha, e a saída (isso não narrou em seus escritos criptográficos) por um gêiser que levava aos territórios da rainha Neuma XXXI, numa jornada em água morna e límpida, e que, de alguma forma, jamais o molhou em todas as vezes em que subiu mundo afora.
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É temporada de continuações. Ou era, porque viajo amanhã pra São Paulo e não postarei de lá. O frio intenso do interior congelará meus dedos e ficarei incapaz de me movimentar até o fim de agosto, embora chegue a Recife ainda em julho (sempre se precisa de certo tempo pra derreter, camarada). Quem liga?
Abraços.