23 julho, 2007

O vice-escolhido

Capítulo I

II.

Marcos aproveitou cada pedacinho de pão para pensar em como se livrar da responsabilidade, mas seu cérebro era mais lento que o de Anthério, e ele sempre chegava à conclusão que não havia saída. Quando pensava em renunciar, como Anthério, a linha de raciocínio o levava a um caminho de decepção e lamento, como Crisóstomo ao ser ignorado pela bela Marcela. As regras divinas estabelecem que a rainha não pode ficar desamparada, e como não existe um vice-vice-escolhido, Marcos seria obrigado a aceitar o cargo, e sua recusa à função geraria a ira divina contra ele e todos seus ancestrais e descendentes. Poucas são, nas Escrituras Secretas de Reino de País, passagens mais claras que aquela que estabelece a segurança da governante, em Mathias, 2;9-17:

9. Haverá sempre não menos que uma pessoa, indicada em nascença pelo representante legítimo do Senhor no mundo, cuja função será proteger a rainha dotada dos divinos dons da boa governança 10. Proteção essa que deve ser exercida com tanta devoção quanto a que deve cada homem ao próprio Deus, e com tanto amor quanto o próprio Deus Excelso dedica a seu povo. 11. Dois serão os escolhidos, e não mais, e não menos; 12. Um em primeiro lugar, com privilégios vitalícios por ser melhor e mais bem provido de astúcia, força física e fé, e mais dotado de beleza e agilidade, e mais capaz de derrotar o inimigo e mais valente, 13. E um substituto, que viverá sempre à margem do titular do cargo, por menos agraciado dos dons divinos, mais relapso e inepto e rebelde, e menos destro e menor e mais volúvel e tolo. 14. Caso um deles esteja impossibilitado ou ausente, o outro necessariamente ocupará seu cargo, independentemente de doença ou mal-passar. 15. Deixar o cargo será pecado mortal para aquele que está sem par na defesa de seu divino representante, e 16. A Vingança Divina recairá sobre aquele que assim proceder e sobre todos os seus ancestrais, até a primeira geração, e todos os seus descendentes, até a última.17. Aquele que assim o fizer, e seguir tudo o que manda o Verbo Primordial, será salvo, e salvas serão suas gerações anteriores, até a primeira, e suas gerações próximas, até a última.

A passagem que dizia que Anthério era mais belo que ele quase criou no país um novo ateu, porque, pensava o vice-escolhido, poucas coisas podiam estar mais erradas que esse trecho das Escrituras. Anthério era, Marcos assumia, mais alto, forte, ágil e valente, mas somente sua mãe o diria mais belo e elegante. Sempre mal vestido, com a gola da camisa aparecendo por trás do pescoço da armadura, Anthério tinha o rosto muito desproporcionado: os olhos, muito pequenos, se afastavam como de pombos, e pensar nisso sempre fazia Marcos dar uma risada um tanto debochada, mas discreta – de alguma forma Marcos conseguia isso. O nariz era grande – imenso! –, e outra ave parecia portá-lo: um tucano. Os lábios eram carnudos demais, e combinariam no rosto de um negro, mas eram muito pálidos, quase brancos, no que se assemelhavam, para Marcos, a duas enormes verrugas sob o nariz, uma acima da outra.

As mulheres do País, no entanto, eram de outro parecer: os olhos de Anthério eram os mais brilhantes do reino, e os mais azuis e mais profundos. Um tanto pequenos, é verdade, mas na posição certa, e com tamanho compensado pelos cílios longos e curvos. Os olhos de Marcos estavam tão longe de ser belos quanto de ser feios, com sua cor castanha sem graça. O nariz de Anthério, julgavam as damas, era másculo, típico nariz de homem de verdade, e o de Marcos era miúdo e afilado demais, e estaria bem colocado no rosto de uma dama, e melhor ainda no de uma daquelas princesas do passado – as princesas do passado, todos sabem, tinham os mais delicados rostos que pode alguém desejar ver: graça e formosura estonteantes, capazes de fazer desmaiar os mais fracos e manter insones os mais pervertidos. Os lábios de Anthério eram “largos nacos de deliciosa alvura”, como descrevera uma ex-namorada sua, ao passo que os lábios de Marcos eram rosados, como todos os outros do reino, e finos, como todos os outros. Resta saber se são deliciosos, que isso não declarou nenhuma ex sua e não ousa arriscar este autor. Isso, naturalmente, esquecendo o tipo físico, que Anthério tinha o corpo largo e pesado, carregado de músculos, e Marcos era esguio. Nascesse alguns séculos mais tarde, nalgum país europeu, e Marcos seria um belo jovem de rosto e corpo aristocráticos.

Marcos chegou a tentar outra interpretação para os versículos que o condenavam ao trabalho forçado, mas que tinha o maior dos salários no prazo, esperava, bastante longo, na busca de uma palavra que o salvasse do trabalho e mantivesse o prêmio, mas não conseguia se convencer de forma alguma que seus pais e seus avós o perdoariam por tamanha desfeita e artifício, e achava que as Escrituras não erravam ao considerá-lo inepto, pois nem de forçar uma interpretação astuciosa para fugir do cargo era capaz sua mente fraca, e, sob risco da punição divina, aceitou ocupar a posição, contrafeito.

Para a vistoria da Rinha Anual de Dragões, que acontecia todos os semestres na província de Anu, Marcos pediu reforço, no que foi negado pelo mensageiro real, que corria para perguntar à rainha depois de cada dúvida:

- Uma andorinha não faz verão, reclamou.

E o mensageiro correu até o salão real, doze milhas de onde estavam, onde repassou para a Rainha Neuma XXXI as palavras de seu vice-escolhido.

- Mas pode abrir a primavera, respondeu a rainha, em tom poético de quem descobre uma frase de efeito, e com voz inflexível e monocórdia.

O mensageiro correu o mais que podia, pois treinava para a Corrida dos Dragões, evento menor que acontece simultaneamente à Grande Rinha. Quando ouviu a resposta da rainha, de fato inesperada por ele, Marcos virou os olhos para cima, puxou um pouco os lábios juntos para a direita, e pôs-se a pensar por alguns minutos, tempo que o mensageiro aproveitou para se alongar.

- De que valem as flores da primavera – disse finalmente Marcos, sentindo a Eureca! estalando sobre sua cabeça - se a Rainha é alérgica a elas?

O mensageiro correu, batendo o próprio recorde, e passou a mensagem à rainha, que riu e perguntou a que se referia a pergunta, que tinha se esquecido porque o mensageiro fora lento – “e só não te demito porque fostes por Deus nomeado”, disse a soberana. O mensageiro repetiu as palavras reais que aqui não merecem mais espaço, e a rainha ficou convencida de que o reforço era justo, e que o vice-escolhido era um homem bom que valia um ajudante e um cavalo.

E com essa argumentação consistente, em que metáfora e realidade se misturaram e que despendeu de Marcos toda sua capacidade, nosso vice-escolhido conseguiu como reforço um escudeiro e um cavalo, aos quais, por capricho, chamou Rocinante e Sancho Pança, respectivamente, embora tivessem já nomes de Luís Carlos e Marcha-longa.

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