29 setembro, 2008

Sabe, Deus veio até mim hoje e perguntou o que se passa, porque eu acabei de dar minhas impressões sempre tão acertadas sobre a natureza humana - como a necessidade física de gostar de Chicago, ou dos Tenenbaums, ou de ler Chandler, ou de ouvir músicas de Natal em qualquer época do ano e Joaquin Sabina sempre, ou mesmo de espalhar por aí minha fixação com pastéis de nata.

Não, o sonho não acabou, como deve estar pensando a leitora. Ele foi interrompido pelas férias do padeiro que construía o melhor pastel de nata do mundo. Nesse intervalo, David Foster Wallace morreu, o governo americano tomou mais medidas erradas que o Lula tomou uísque, e o governo brasileiro idem. Já começo a achar que, comparativamente, o uísque do presidente é o problema menos explosivo do mundo. E as férias do padeiro são o mais.

Não entendo porque alguém tiraria férias enquanto eu estou em Recife, e isso faz parecer que a cidade não gira em torno de mim (e se nem a cidade gira, imagino que o mundo está longe de cumprir o seu papel). Volto hoje para um anúncio que valerá, em alguns dias, mais do que todos os papéis da bolsa de São Paulo: o padeiro voltará a trabalhar na próxima segunda.

A excitação não é pouca, vejam vocês: o mundo volta, aos poucos, a girar ao redor do meu umbigo - que é o umbigo mais limpinho das redondezas, garanto, apesar de alocado numa barriga que não é a mais desejada.

Deixe-me, portanto, dar dicas de como ser uma pessoa melhor, de como merecer o respeito de seus filhos:

1. Assista Death Note e ame;

2. Esqueça que Saramago é comunista, leia e ame;

3. Esqueça que os candidatos à prefeitura são políticos e ignore;

4. O mesmo para os vereadores;

5. Pegue o primeiro jornal que você encontrar e critique seu papel e a tinta que solta nos seus dedos;

6. Largue o jornal sem ler - apenas, por curiosidade, olhe de esguelha a manchete e sinta-se repelido por ela;

7. Odeie qualquer coisa que queira ser pós-moderna. Aquelas que são pós-modernas podem ser agradáveis, entretanto;

8. Assista Chicago. E de novo. E de novo;

9. Entregue-se a um hobby interessante: coleção de selos, hipismo, esgrima, sono;

10. Não divulgue lista das coisas que você acha serem apropriadas, porque isso mostraria o tamanho de seu mau gosto e sua inevitável inferioridade em relação a mim. E ela talvez incluísse recomendações à leitura de gente como James Joyce, que, embora possa ser lido, não deve ser recomendado. James Joyce deve ser como a masturbação de milhões de intelectuais mundo afora, ou a coisa fica indecente.

Ninguém jamais gostou de James Joyce por causa da história de Ulysses, e nem tente me convencer pela forma. O assassinato do romance me causa mais dor que excitação, veja bem, porque o romance é o estilo em que praticamente tudo o que li foi escrito. Imagina acordar e descobrir que todos os seus amigos e parentes estão enterrados, que talvez até você esteja, só por causa de James Joyce.

Guarde pra você as dores da morte do romance, que eu ignoro completamente que ela ocorreu, e sigo aqui com minha biblioteca pré-1922. E, gente, tem muita coisa boa feita antes de o romance morrer. Até depois de morrer ele deu umas fugidas da cova e disse a Joyce que não, ele, o autor, não era melhor que ele, o romance.

Você também incluiria coisas como "sofra ao ouvir falar em Paulo Coelho", e, note, essa não é a reação correta. Ao ouvir falar em Paulo Coelho devemos disfarçar o desinteresse por educação, e responder sempre com a pergunta "É?". Você, leitora, não está apta a fazer lista alguma - não se for uma lista como esta, de pretensões morais e éticas generalistas. Você até pode descrever seus dez álbuns favoritos, ou seus dez filmes, atores, livros, títulos, mas não tem autoridade para julgá-los com esse tom absoluto com que julgo tudo. A menos que você seja o padeiro, e resolva que abandonar as férias com uma semana de antecedência é uma boa idéia. Nesse caso você está certo, e nem é mesmo a leitora com que eu estava falando até agora. Aonde ela foi, aliás?

18 setembro, 2008

Um panfleto

Tomás, depois de muito estudo, muitas estatísticas, e todos esses processos econômicos muito complexos para serem explicados por mim, concluiu que almofadas com capa de renda eram 80% mais lucrativas que qualquer outro produto jamais produzido. Não importava a alternativa: as almofadas sempre davam 80% mais lucro que ela.

Começou tímido. Sua produção era baixa, mas dia após dia suas almofadas com capa de renda confirmavam seu otimismo inicial e se espalhavam pela cidade. Em menos de um ano seu crescimento chamou a atenção de investidores e industriais, e novas fábricas de almofadas com capa de renda surgiam.

Os lucros de Tomás, de alguma forma, não reduziam, nem eram menores os de seus concorrentes. Em pouco tempo Tomás, que começara discreto, logo dedicava sua fábrica inteiramente às almofadas com capa de renda, e montava para seus familiares fabriquetas similares.

A concorrência deixava de existir, e todos agora eram colegas. O governo, vendo tamanho crescimento de um setor tão inesperado, começava a distribuir subsídios para que toda a produção do país fosse substituída pela de almofadas com capa de renda. A moeda passou a ser lastreada por esse produto, e, apesar do crescente número de almofadas com capa de renda, não se via sinal de inflação.

Os fazendeiros, que insistiram por alguns anos em continuar suas plantações, começaram a investir nas almofadas com capa de renda depois de uma safra terrível, com preços muito baixos e produção menor ainda. Satisfeitos, ampliaram sua produção, e as linhas de produção pouco a pouco ocupavam todos os hectares de suas fazendas.

Tomás novamente revolucionou: decidiu exportar as almofadas com capa de renda. Em um fio de tempo Tomás possuía uma multinacional, e foi seguido por um par de empresários que enxergavam a mesma possibilidade. O governo decidiu que os impostos de tanto lucro não podiam ser desperdiçados, e decidiu que as almofadas seriam consideradas produtos da cultura do país. Tomás vibrou com a notícia.

Com a medida do governo, todos decidiram exportar o produto nacional - disso dependia a tradição do país, sua soberania estava atrelada às almofadas!

O crescimento do país era o maior de toda a história. O governo usava os impostos na construção de universidades de Estudos da Almofada e Engenharia de Materias Acolchoados, havia vagas para todos, dezenas de profissionais especializados, e julgava-se que as universidades poderiam até aumentar a lucratividade das almofadas. Aumentar, quem diria! Tomás comemorava cada medida em favor de seu produto, que em menos de uma década se tornara o principal aspecto cultural de seu país.

O país já vendia almofadas para o mundo inteiro, e, finalmente, pela primeira vez os lucros começavam a diminuir, agora que quase todas as casas do mundo tinham várias dúzias de almofadas com capa de renda. Para amenizar a situação, o governo retirou metade dos impostos sobre as almofadas, e manteve a arrecadação com aumento de 100% sobre produtos de luxo, e mais 15% sobre o feijão.

Com fôlego renovado, os industriais continuaram a produzir suas almofadas com capa de renda, e, para agilizar a melhoria do produto e aumentar a lucratividade mais depressa, o governo desviou verbas da educação fundamental para a universidade, que, afinal de contas, renderia muito mais dinheiro e possibilitaria a recuperação imediata da economia.

No meio tempo, alguns países vizinhos que começavam a produzir almofadas com capa de renda entraram com uma ação antitruste e drawback na OMC, e, com ganho de causa, obrigaram o país a cortar os subsídios. As almofadas com capas de renda, em um lapso, deixavam de ser lucrativas e se acumulavam nas prateleiras.

A universidade custava mais do que dava retorno, mas voltar atrás agora seria dar com os burros n'água de vez. Pesquisa e desenvolvimento foram estimulados como nunca, e a criação de novos materiais era urgente. Afinal, descobriu-se uma nova forma de polímero muito mais confortável, que salvou o país da crise por mais cinco anos - prazo em que o mundo todo se equipava de novas almofadas e se livrava das antigas, desconfortáveis.

Passados esses cinco anos, a crise voltou mais intensa. As fábricas faliam em massa, e todos os operários treinados para essa área começavam a temer pelo seu sustento. Daí surgiu um economista, de um país vizinho, que disse que tiraria o país da crise se, depois disso, ele recebesse uma porcentagem do PIB. Os industriais, desesperados, forçaram o presidente a aceitar a proposta.

O economista, então, alegou que o governo não podia ser tão frouxo, que o egoísmo dos industriais era o responsável pela crise, porque, "siga meu raciocínio", se as almofadas são tão lucrativas, é óbvio que todos eles vão produzir o máximo possível, até que essa produção supere a demanda e se acumule por aí. Mesmo assim, é preciso estimular a produção, garantir um preço mínimo e a sobrevivência financeira das empresas.

O economista também disse que faltaram ações do governo para regulamentar a produção e a exportação, e que o governo também devia ter cedido mais impostos, aberto mais portos e investido mais na universidade - "15% do PIB, onde já se viu?", ele dizia.

O governo seguiu, uma a uma, as recomendações do economista, e, cinqüenta anos depois, todas as fábricas fechadas, o país começava a se reerguer, não com a pujança anterior, mas com pequenos comerciantes que se esqueciam da lucratividade das tradicionais almofadas e começavam a investir em outras áreas.

O economista, satisfeito com seu trabalho, pediu ao governo que cumprisse a sua parte, e a porcentagem prometida do PIB não somou o bastante para fazer a riqueza do economista, que morreu pobre.

Até hoje, entretanto, ele é referência em qualquer lugar do país, e sempre que alguém fala que está sufocado por regulações e impostos, o nome dele surge para lembrar a todos do que a liberdade com a economia é capaz, e todos baixam a cabeça novamente, e perguntam ao governo que novo passo seguir.

O país nunca recuperou sua situação pré-almofadas, bastante confortável, mas segue na luta, sempre com mais e mais regras, para que o crescimento não seja exagerado, e a constância substitua a euforia. O principal objetivo do país, agora, para evitar qualquer crise, é a completa estagnação. Objetivo bastante racional, observados os efeitos negativos do crescimento econômico.

16 setembro, 2008

Educação

Metade do que sei aprendi na sala de aula. A outra metade é útil.

E me parece que a principal missão da faculdade é podar os talentos. Os meus não foram podados, entretanto. Sabendo que iria pra faculdade, me preveni e nasci sem eles.

13 setembro, 2008

Pessoas não são objetos, assim como objetos não são plantas;

Logo, pessoas são plantas.

Quando tudo isso começou, eram apenas os veganos querendo me convencer de que comer carne é imoral, de que os abatedouros não desumanos, de que as plantas nos satisfazem completamente as necessidades. De todos os argumentos dos vegetarianos, o único que já me tocou foi aquele de ter pena dos animais, porque meu coração de manteiga sempre se deixa levar por qualquer apelo sentimental, por bobo que seja - quase chorei hoje, por exemplo, vendo Lilo & Stitch no Disney Channel, com toda aquela história do significado de Ohana. Fui mais tocado por aquilo que o próprio Stitch, enfatizo, embora sem provas.

Como dizia, meu coração sempre ficava confrangido ao pensar em como as ovelhinhas eram apanhadas enquanto saltavam cercas, para logo depois serem abatidas e laceradas, deixando ali chorando suas famílias.

Esse tipo de sentimento comigo, no entanto, some ainda mais rápido do que surge - e só por isso meus roommates não me pegaram às lágrimas com a história da menininha que perdeu os pais e para quem sobraram somente a irmã (e em risco de perdê-la). O sentimento se esvaiu antes que alguma lágrima caísse, e antes que eu invadisse alguma fazenda com placas de militância pró-animais e derrubasse as cercas que a ovelhinhas pulavam para que ninguém mais as capturasse. Sempre relevei esse meu sentimento e voltei a comer minha carne, geralmente poucos minutos depois.

Outras pessoas, entretanto, não se contentam em não se deixar mudar. Querem desfazer a mudança em quem mudou. É a contra-reforma veganista. De repente, todo mundo se tornou pároco, e mal está quem está de algum lado, sempre atacado por montes de idéias vazias e mentes ocas. Conservo minha neutralidade suíça e não luto por causa alguma, mantendo-me plácido à mesa, encarando um prato que espera o resultado para se encher de alface ou picanha.

O maior dos problemas é que a contra-reforma, vocês sabem, só intensifica a importância da reforma - vamos, luteranos, admitam que sem a inquisição vocês não seriam ninguém. E quanto mais intensa a reforma, mais gente está aí, disposta a derrubar a nova fachada - ou a defender a antiga, ora, não entremos nesse nível de detalhamento, que isso não acrescenta nada, e ainda embaralha as idéias.

Daí que, se não tomo partido dos reformistas (e considero os argumentos deles mais frouxos que cadarço em sapato de velhinho maneta com mal de parkinson), também não consigo levar a sério os contra-argumentos que os inquisidores encontraram por aí. Os paralelismos traçados são todos inválidos - "e você não tem pena de um pé de alface?" não convence sequer a ele mesmo, pois sabe Deus que motivos ele tem pra comparar alface a vaquinhas - e, embora caibam comparações do tipo "uma vaca pesa mais que um pé de alface", cabe também a que diz que "uma sequóia pesa mais que uma rã", embora eu desconheça alguém que tenha comido sequóias, ou pelo menos um carvalhinho que seja, e muito poucos conhecidos tiveram coragem para degustar rãs.

Fato é, eu não tenho pena de um pé de alface, nem mesmo de uma plantação inteira, e se puserem um arrozal e um trator na minha frente eu me divertiria bastante esmagando cada uma das plantinhas, enquanto tomaria cuidado para não atropelar as lebres que vivessem por ali.

Mas espera, deixa eu voltar e desfazer esse nó que tem meu texto, que está mais embaraçado que o cabelo da minha irmã depois de um dia inteiro na praia. Até agora o que eu disse foi:

1. Os veganos querem que eu pare de comer carne, mas nenhum de seus argumentos me faz levantar da cadeira;
2. Eu quase chorei vendo Lilo & Stitch, da Disney, e poderia omitir essa informação;
3. Ao contrário da minha passividade diante das observações obtusas dos veganos, algumas pessoas se irritam mais do que deviam, e acabam fazendo uma militância pró-status quo;
4. Os argumentos de simetria são inválidos, porque ninguém confundiria uma árvore com um ser vivo - claro está que árvores não têm narinas.

Agora, revisando tudo, vejo que nada do que disse está bem encaixado ou logicamente arranjado, e que se eu quero dizer alguma coisa devo parar de dar essas voltas e falar logo. Pois que seja:

Acho chato quando alguém quer me mudar ou fazer com que eu pare de comer minha picanha ao avesso recheada de provolone e bacon, mas não custa a ninguém tentar uma vez. Querer que essa briga seja cíclica e se desdobre eternamente, entretanto, com pessoas militando dos dois lados, catecismo e descatequização, para recatequizar depois, é fazer da minha paciência carne moída - nem que de soja -, e esse é um grande defeito dessa militância pró-carnivorismo, essa corda que dá para o veganismo.

O pior defeito da contra-reforma, no entanto, é sua falta de fundamentação. Embora, repito, todos os apelos éticos dos veganos não façam o menor sentido, eles apelam por eles - e isso me faz achar ainda mais idiota sua posição anti-queijo, rapaz -, para que não sejamos nazistas e respeitemos essa igualdade que vêem entre uma lagartixa e nossas namoradas.

Já os carnívoros lutam para impor uma preferência sua, algo principalmente estético. Se eles percebem que os veganos estão errados, mas concordam que não fazem mal a ninguém, deviam, como eu, ouvir calados. Se, por outro lado, eles decidem lutar contra os veganos, dizendo que eles nâo têm o direito de sabotar os açougues, nem de comparar nossas namoradas a lagartixas, tudo o que merecem é nosso ódio.

Da próxima vez que tentarem me convencer de que eu tenho que comer carne - mesmo sabendo que eu já como, e muita, mas com a sincera intenção de me convencer dos motivos para que eu coma - eu não deixarei irem embora até que eu prove que, embora eles tenham passado seus 37 anos sem ter visto nenhum, não se pode viver sem assistir a musicais, porque, veja só, é cientificamente provado que, para ser saudável, um homem deve consumir pelo menos 300 gramas de musicais por dia, que só musicais contêm os aminoácidos tal e tal, e que é incrível que eles ainda tenham forças para argumentar.

Ora, onde já se viu alguém se preocupar tanto com a boca alheia que acabasse esquecendo de cultivar a própria cabeça?
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Aqui embaixo, apenas como nota não-relacionada, digo que há um candidato a vereador do PHS (Partido Humanista S-algo) que defende a instituição da pena de morte em Recife. Não voto nele por quatro motivos:

1. Ele não tem poder para isso;
2. Ele é contraditório por estar num partido humanista;
3. Sou contra;
4. Não voto em Recife.
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E agora, em nota ainda menos relacionada, aproveito sua atenção pra enfaticamente não recomendar a peça "Seis Personagens à Procura de um Autor", do Pirandello. Eu devia ter desconfiado no prefácio, quando ele diz que é um escritor do tipo "filósofo", mas fui muito condescendente e li esse livro cuja nota que dei, no shelfari, e só porque o nome dele é legal, foi 2.

11 setembro, 2008

E o Filthy disse que não acabou...

Pedi uma trufa de morango e me deram de JACA.

04 setembro, 2008

Os hábitos dos ninjas e sua contribuição para o mundo moderno

O maior defeitos dos inconvenientes é não sabermos jamais o que acontece a eles depois que nos incomodam. Numa viagem noturna, por exemplo, alguém que conversa aos berros com outra pessoa vinte poltronas atrás, terminada a viagem, simplesmente sai do ônibus (e, consegüentemente, da sua vida), sem que você veja o que aconteceu a ele e seu amigo.

Não podendo me conter de curiosidade, assim que saí de uma dessas viagens, que havia feito de propósito para isso, dando a mim mesmo alguma ocupação nas férias, depois de oito horas de gritos, eles seguiram caminhando rumo ao desconhecido.

Depois de dobrar a primeira esquina, eu logo atrás, os diabos resolveram que sairiam de carro, com o porta-malas aberto e som muito alto, pra incomodar os namorados que escutavam grilos à beira-rio, a água batendo suave nas pontas dos dedos.

O funk começou, e os namorados logo perceberam que duraria tanto tempo quanto eles pudessem gastar ali. Fugiram, atitude natural diante dos inconvenientes que impede que nós os conheçamos a fundo nossos inimigos - e que eu, com muita força de vontade, estava combatendo.

Depois disso, uma série infinita de absurdos - na igreja, celular; no cinema, cartola; a mão no nariz no restaurante, os pés sobre a mesa na visita ao amigo, o arroto após o jantar, o ronco enquanto dormiam, ladeados por outras centenas de inconvenientes - talvez a maior barulheira desde a invenção do Death Metal.

Começava a me cansar dessa pesquisa, que não me rendia frutos e só aumentava meu desprazer, quando o sol raiou, e a aurora trouxe consigo pássaros, conversas matutinas sem escovar os dentes e, surpreendentemente, ninjas.

Ocorre que, apesar de sua incrível capacidade reprodutiva, os inconvenientes são presas naturais dos ninjas.

Em poucos minutos, a fumaça das kemuridamas ocupava todo o céu e a terra. Centenas de inconvenientes respiravam a poeira de dezenas de ninjas.

Gritos se seguiram e, quando a fumaça baixou, Kunais estavam cravadas em alguns peitos e testas, shurikens faziam vazar sangue aos pescoços, algumas cabeças e troncos se separaram, atravessados por katanas e ninja-tos, bos atravessavam seus corpos do início ao fim do sistema digestivo. Estavam mortos todos eles, incluindo os dois que me importunaram no dia anterior. Em pouco tempo descobri que o tempo médio de vida deles é mesmo esse, 24 horas ou um pouco mais, quando dão sorte.

A cena, certamente a mais terrível da minha vida, me fez pensar que havia coisa pior que ser importunado infinitamente pelos inconvenientes. Mas depois me arrependi de pensar isso. Decidi domesticar um ninja, pra me acompanhar em todas as viagens.

01 setembro, 2008

Mariana Al Cagüete

Essa história de "ponha-se no lugar dele" nunca me convenceu. Dois motivos me fazem sustentar essa descrença: o primeiro, porque posso suceder nessa empreitada. O segundo porque posso falhar.

Se tiver sucesso, digamos, em me pôr como um católico nessa história da Carol Castro, assunto mais batido que bife de segunda, certamente verei seus motivos para ser contra a revista. Fúteis, tolos, falsos: motivos.

Se falhar, simplesmente sobreporei minha moral à do pobre Eurico, e tudo o que condeno continuarei a condenar - apenas com uma batina ocupando o lugar da camisa e da bermuda sobre meu corpo atlético.

Me pôr no lugar de outrem, portanto, me parece reflexão demasiado dispendiosa para retorno nulo. Prefiro procurar valores impessoais de que possamos partilhar o presbítero e eu, senão com a felicidade do desejo concedido, com a resignação de uma decisão bem tomada.

Não era assim que pensava Mariana Al Cagüete, que tinha em seu nome espelho de sua alma - como em todos os espelhos, a imagem invertida enganava, pois Mariana jamais abrira a boca para denunciar ninguém. Não de propósito. E nem isso importa em minha narrativa.

Ocorreu há alguns anos. Não tantos que me faltem dedos, nem tão poucos que me ocorra a data*. Estipulemos, porque às vezes é preferível um leve desvio à falta de informação, que há cinco anos ocorreu tudo isso que direi, na primavera de 2003.

*

Mariana era famosa em toda a Escandinávia por sua piedade, embora jamais houvesse chegado perto daquela região. Sua fama começara nas terras geladas, e talvez jamais tivesse chegado ao lugar onde viveu e nasceu ela se não a houvesse buscado eu, em viagem recente que fiz à Europa.

(Às vezes assim age o Destino, dando a nós mais de Ibsen que aos escandinavos, e a eles mais de nossos valorosos heróis. Não há que reclamar, senão contemplar passivo todas as Suas peças).

Pois bem, que volto à narrativa.

É verdade que adquiriu em vida tal fama, e também é que defendia sem remorsos assassinos, estupradores e vendedores de açaí, mas não o fazia por piedade - e eis aí a história, que começava torta, se endireitando pelos meus braços e pelo meu juízo.

A verdade é que Mariana Al Cagüete fora educada por sua avó, D. Senhorinha Inês, uma senhora de pensamento muito mais liberal do que convinha à sua época, e ainda um tanto excessiva mesmo para os dias de hoje, em que as orgias em praça pública são quase um cerimonial religioso.

Dentre as lições que lhe ensinara a avó - bordado, crochê e tricô eram estudados diariamente, e com muito mais intensidade, que matemática e letras -, havia uma em que Mariana por toda a sua vida se destacara, e nela ganharia qualquer prêmio que se estabelecesse para louvá-la. Mariana podia, mais que ninguém, pôr-se no lugar do outro (muito melhor que pôr-se no seu próprio, garota inconveniente que foi, e quando mulher ainda mais).

É dessa forma que Mariana começa a procurar desculpas para os erros do açougueiro, que mal lhe pesou a carne, o padeiro, que um pão lhe subtraiu, e o padre, que incorretamente a benzeu.

No começo por inocência, e depois por vício, Mariana se entregava à prática de se pôr onde não devia, no lugar que, por ser do próximo, por ele, e ninguén mais, devia ser ocupado.

A brincadeira de entender o açougueiro em pouco evoluiu, e já aos vinte ela procurava entender os pequenos bandidos, ladrões de galinhas. Aos vinte e três, e com mais força, começava a estudar nas páginas policiais os motivos que teriam seqüestradores e assassinos (na mesma época, não se sabe até hoje se coincidência, morreu seu avô, e sua avó sumiu).

Depois seus atos seguiram suas considerações mentais - no que reforçam a insinuação de deitei no parágrafo anterior - e ela passou a cometer abertamente pequenos furtos, seqüestros relâmpagos e, ninguém nunca descobriu, mas suspeita-se, quatro assassinatos.

Prendê-la era impossível, pois Mariana também se punha no lugar dos detetives, e se antecipava a eles, sempre conseguindo fugir. A solução do delegado foi drástica, e imprevisível mesmo para a pobre Mariana.

Com toda a cautela, consultou na biblioteca o arquivo do último ano do jornal da cidade. Decorou estilos e vícios de todos os jornalistas - lá ainda era permitido aos periodistas ter estilo, e seus vícios geralmente decorriam disso - e escreveu uma breve nota.

No dia seguinte, pela manhã, enviou ao jornal sua nota, seguida de recomendação de que se publicasse no jornal, na página ..., do caderno ..., em tamanho grande, acompanhada da foto anexa, sob a assinatura do jornalista ..., ainda na edição da tarde.

Quando voltou da banca naquele dia, Mariana leu a nota do delegado. Na página, ao lado de uma figura feminina, a manchete "Suicídio em ... Peritos terntam descobrir os motivos".

Foi a última vez em que ela se pôs no lugar do próximo.
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*A idéia original era "Não tantos que me faltem dedos, nem tão poucos que sobrem ao Lula", mas piadas com o presidente, me parece, perderam a graça semana passada (embora eu ainda desenhe um sorriso de mau-gosto pra minha própria piadinha). Outro motivo é que eu não queria eternizar o Lula num conto meu.