25 outubro, 2008

Acossado

Acordou e viu o mundo balançando tão ferozmente que logo notou o óbvio: estava dentro de um filme de Godard. Tentou em vão bater na tela, sair de lá. Não havia tela. Não queria que sua vida o deixasse tonto como os filmes do francês faziam com ele. Seus olhos não podiam mais fixar-se em nada, ficavam sempre inquietos, e qualquer imagem que tentasse enquadrar saia logo de quadro, porque de alguma forma seu pescoço não tinha mais força para manter em pé sua cabeça por muito tempo.

Sobreviveu ao primeiro dia, ao segundo e ao terceiro. Temia que tudo fosse piorar, mas aos poucos se acostumou com a idéia de não manter parado o pescoço e ver o mundo balançando, embora - diga-se a verdade - tudo aquilo lhe rendesse fortes dores de cabeça e dificultasse incrivelmente seu maior passatempo, a leitura.

Estava afinal satisfeito com a estabilidade que sua doença adquiria, pois ouvira dizer de gente que acordava com a vozinha de Jean Seberg narrando o seu dia com aquela vozinha francesa que se tornava insuportável após poucos minutos. Os casos que evoluiam assim terminavam inevitavelmente em loucura ou suicídio - e dos suicidas não temos como colher depoimentos, mas os loucos estavam todos satisfeitos com sua nova situação. Temia todos os dias acordar com a narração da jovem e, pior, não a veria, não a tocaria. Não seria possível nenhum contato: ela mera narradora da sua vida. Quanto à narração, havia três tipos, geralmente:

1. Ela narrava em francês, e só era possível entender o que ela dizia porue tudo o que ela dizia era justamente o que o doente fazia, passo a passo, numa monotonia infinita. Essa variedade da doença, a primeira a surgir, tinha a princípio a vantagem de ensinar ao acometido o idioma francês, e por isso costumava só enlouquecer a vítima depois que o domínio do idioma já fosse completo, justamente por conta da irrelevância de tudo o que dizia a moça;

2. A narração era dublada em português, mas de alguma forma a voz e a entonação da atriz permaneciam inalteradas;

3. A narração era em francês, mas vinha acompanhada por legendas mal escritas. Esta, certamente a forma mais fatal da doença, tinha como agravante a capacidade de ensinar mau francês ao doente, que trocava todas as expressões por algum termo semanticamente distante. Quando o doente descobria que tudo o que a doença lhe fizera de útil era, na verdade, prejudicial à própria realidade, era invariável: matava-se. Eis a única modalidade da doença da qual não restou um único exemplar para estudo.

Ele pesquisou intensamente na internet e em toda a bibliografia disponível sobre o Mal de Godard, e descobriu que o que eles chamavam de "distorção imagético-narrativa" não era, de fato, delírio, mas manifestações físicas comprovadas, e o motivos de apenas os doentes ouvirem as narrações (que podiam ser percebidas por freqüencímetros) eram misteriosos, mas o mundo tremia por causa de uma "instabilidade retno-palpebrática" aliada a um enfraquecimento dos nervos supraclaviculares que estavam em estudo na universidade estadual, mas cujas origens eram desconhecidas e cujo tratamento era desconhecido.

Pesquisou, como o pai de Lorenzo, apesar de toda sua dificuldade para ler, todas as possibilidades de cura. Não havia saída em lugar algum. Afinal, resolveu fazer o que nunca fizera antes: assistir a "À bout de suffle" para entender o que poderia ter causado tamanha inquietude na câmera de suas retinas ou nos nervos de seu pescoço. O filme era comum: qualquer coisa de monótono, qualquer coisa de tipicamente francês. No fim do filme, não agüentando mais a voz da jovem e bela atriz, disparou dois tiros na televisão, na esperança de matá-la. Perdeu a televisão, mas manteve a doença.

"Resta-me uma alternativa", pensou, despejou Veronal veia adentro, numa tentativa irônica de morrer como morrera quem causava sua morte. Estava curado, o mundo não tremia mais. Em pouco tempo o mundo deixou de existir completamente, e o alívio antecedeu o fim. Era, afinal, melhor morrer que viver num filme de Godard. Um sorriso franco estampou os jornais do dia seguinte, e a fotografia quase dava vontade em quem quer que o visse de acompanhá-lo na sua jornada. Mas não há motivos pra fugir da vida quando ela é simplesmente a vida, e não um filme de Godard.

18 outubro, 2008

A cigarra e a formiga

- É de lebre, vô?
- Cem porcento.

E o velhinho colocou sobre a cabeça do neto o chapéu de pele escura, muito largo para a cabeça do menino, cobrindo parte dos olhos e da nuca. Desajeitado, o menino beijou o avô na calva e, com o seu novo chapéu, partiu em busca de aventuras.

Sempre o impressionou a velocidade com que ele e seu avô convergiam em tamanho. Ele crescia na medida em que o pai de seu pai encolhia, e seu maior medo era que, em oito anos, seu avô não fosse mais que um bebê, e todas as histórias que ele contava hoje ficassem guardadas para sempre em sua cabecinha infantil - em oito anos, pelo menos, acho que nem vou mais querer ouvir nada dele -, consolava-se, sem piedade, mas inocentemente.

O objetivo do menino agora era reproduzir com o chapéu do seu avô tudo o que seu avô teria feito tivesse conseguido aquele chapéu na sua idade. Agora, com o passo de seu avô já lento, ele correria a cavalo por toda aquela plantação de soja e sorgo para honrar o menino que foi aquele velho.

Esse objetivo durou poucos dias. Quando seu avô lhe contara que caçara onças, que pescara tucunarés, que entrara escondido pela porta de trás do cinema, tudo isso parecia divertido. Tentou sem sucesso reproduzir. Agora era tarde.

As onças continuavam por lá, esperando uma bala de chumbinho. Também os tucunarés nadavam pelo riacho no mesmo ritmo de há sessenta anos, e o cinema continuava ali. Pião, cavalo, subir no limoeiro desviando dos espinhos, nada mais fazia sentido. Seu avô continuava sentado, e achava bonita a inocência do neto. Quando viu que o menino não se interessava mais em colher a mais linda goiaba do pé, ou em brincar de caverna sob a gruta que formava entre seus galhos o pé de carambola, chamou o menino para uma conversa.

- Me devolve o chapéu, que você tem cabelo pra te proteger.
- Tó, vô.
- Meu filho, que aconteceu que você desanimou tanto?
- Nada, vô.

Tudo isso o avô falava num tom compreensivo, e o menino respondia com vergonha de não ser como o homem que mais admirava, e por vê-lo à sua frente sabendo que ninguém jamais reproduziria o que ele tinha feito. E o tempo deste parágrafo foi silêncio, rompido pelo menino:

- Sabe, vô? Eu sempre quis fazer tudo o que o senhor fez. Sempre quis pular cercas, correr atrás de coelhos, caçar onças. Não sou bom em nada disso, vô. Tô pensando em desistir.

Ele estava triste como nunca estivera, como se houvesse morrido sua esperança de ser bom em tudo o que mais admirava.

- Que importa se você é incapaz de fazer o que eu fiz? É justamente por ser incapaz que você me admira, meu filho, e agradeço a Deus por ter um neto tão diferente de mim, tanto em gosto quanto em habilidades. Pois veja que, na época, isso era tudo o que eu podia fazer, tudo o que eu sabia fazer. Nunca me admirei por ter caçado mais onças, mas admirava intensamente seu tio Léo, que assobiava melhor que uma cotovia, enquanto eu não fazia som algum.

- Mas assobiar é fácil, vô! Não tem nenhum mérito nisso!

- O homem, meu filho, nunca dá valor ao que sabe fazer, mas acha valorosos os feitos dos outros. Não direi pra você parar de pensar assim, mas, ao contrário, peço que continue achando que tudo o que você faz é medíocre, mas que tente sempre fazer esse medíocre parecer bom. Sempre tente melhorar. Porque em tudo é possível ser bom, e no que é bom um homem honrado não vê tanto valor. Mais vale pra ele aquilo que não sabe fazer, aquilo que não tem habilidade para fazer.

- Quer dizer que eu devo te admirar, mas não tentar te imitar?

- Se você não é capaz de fazer o que eu fiz melhor que eu, tente só fazer aquilo em que você é bom. Assim poderemos um admirar o outro, sem jamais termos que nos apiedar do que o outro faz tão mal.

- Faz sentido, vô. Mas acho que não consigo.

- Ninguém consegue, filho, e eu mesmo assobio vez em quando. O homem não se livra da inveja, e imita o bom para superá-lo. Ninguém faz aquilo em que é bom, mas todos fazem o que admiram. Não sei se é um defeito, porque exige coragem, mas é meio estúpido, sim. Vê que teu tio Léo virou cantor, mas prefere cavalgar a ouvir seu próprio canto, e que eu sou fazendeiro, mas me divirto mais quando assobio que quando planto grãos...

- Mas então...

- Mas se posso assobiar é porque os grãos me dão retorno pra que fique despreocupado e permita que o sopro saia sonoro. E se teu tio tem cavalos foi com notas musicais que ele os comprou. Repito, meu filho: dedique-se àquilo em que você é bom, para que possa fazer aquilo de que gosta.

14 outubro, 2008

Sobre um filme que não recomendo

Todas as vezes que meu coração decide que sim, a humanidade pode ser boa, e que a vida é cheia de surpresas positivas, invariavelmente levo uma rasteira da vida e baixo o facho. Não existem surpresas. As pessoas boas são sempre aquelas que você já imagina, e esperar alguma reação positiva de alguém cujo rosto não denota nenhuma é como esperar que caiam no seu colo, durante uma chuva, gotas de diamante.

Vejam bem: digo isso pra que não me chamem de intolerante, para que não me recriminem por endurecer minha alma, e porque precisava de um pretexto grandioso para escrever aqui.

Hoje dei uma chance a um rapaz de mullet. Há meses ele me convidava a participar de um cineclube, com filmes alternativos. Como eu mesmo vejo filmes bastante alternativos em relação a gente como, sei lá, meus pais, e acho que são muito bons, pensei que não seria tão mal dar uma chance ao rapaz de mullet.

(É importante repetir tanto quanto possível que o rapaz tinha mullet, característica que deveria ter-me feito duvidar de sua integridade em todos os aspectos de sua vida, mas minha tolerância foi mais forte e eu aceitei o convite).

Chegando à sala de exibição descubro que o filme vai ser japonês - fico feliz, pois esperava algo da Tailândia ou do Irã. Entro de bom grado na sala onde será exibido o filme - e não digo o nome, para que vocês, Pandoras, não destruam seus mundos como eu destruí meu dia -, e lá dentro descubro que o filme não só é japonês: é mudo. Ou quase. Ele não tem palavras, porque "filme grande não tem palavras", diz o papelzinho que me entregaram. Tem música e imagens.

Depois de ler isso decidi sair, e por alguns instantes meus pés aceitaram caminhar na direção da porta. Mas novamente, contra a natureza, resisti, e fiquei. O resultado é que assisti um filme com centenas de seqüências repetidas, atuações medonhas e tediosas, e história completamente irreal (não que eu ligue para a verdade no filme, mas eu curto uma certa coerência interna que faltava tanto ao filme que às vezes eu pedia a Deus que jogasse algum nonsense mais engraçado.

Vejam bem: os personagens - uma família - moram sozinhos numa ilha sem água potável, e para terem acesso à bebida precisam remar pesadamente até uma ilha próxima, carregar baldes pesadíssimos e subir um morro com os baldes nas costas. Tudo isso para regar a plantação.

É tolerável que alguém faça isso para sustentar a si e aos filhos, mas eles iam até o outro lado do mundo pra buscar água para as plantas. Não só isso, mas eles faziam isso para ter lucro. Se alguém pensar em alguma forma mais improdutiva de ganhar dinheiro, favor colaborar na caixa de comentários.

Tudo isso é ainda aceitável se o que se quer é mostrar o sofrimento da família e sua luta cotidiana contra a realidade, essa malvada. Mas esse filme, em uma sala tão alternativa, não seria tão óbvio. É possível pensar numa série de reações razoáveis que a família tomaria tendo em vista a própria situação. Nenhuma delas inclui continuar vivendo do cultivo de arroz e soja numa terra árida e sem acesso à água.

Esse filme serviu para, novamente, reafirmar na minha frente que os orientais são estúpidos, e basicamente só para isso. Assim como em Amores Expressos, tudo o que restou do filme foi raiva dos personagens. Raiva de serem tão estúpidos. E nem é o tipo de raiva comovente, tocante, ou seja lá qual foi a intenção do diretor. É uma raiva meramente tediosa, que nos faz romper em gargalhadas (e angariar a raiva das pessoas sensíveis da sala).

Eles passam um ano para colher três sacas de arroz, perdem um filho, sofrem sob o sol e sob a chuva, e depois de tudo a única decisão a que chegam é que está tudo bem, vamos plantar mais arroz.

Eles sequer seguem as regras da natureza, como, sei lá, aquela desenvolvida pelos homens das cavernas de plantar na época de chuva para facilitar a germinação. Eles não tentam acumular água da chuva, e saem para pegar água no córrego da ilha vizinha mesmo sob tempestade.

O problema de filmes que tentam analisar o sofrimento humano é que, às vezes, eles analisam o sofrimento de máquinas acerebradas incapazes de um lampejo de inteligência ou criatividade.

Além disso, com a pura intenção de fazer um filme mudo, assim, sem palavras, o diretor, tão burro quanto os personagens, abriu mão de qualquer expressão de sentimento em momentos que, num filme de verdade, seriam cruciais. Abriu mão de qualquer relevância ao mesmo tempo.

Enfim, como cinema, experiência estética, emocional ou qualquer coisa que alguém pode procurar, com ou sem razão, no cinema (a não ser que se procure o tédio de olhar para a parede, no que a estupidez humana seria superada novamente), esse filme falha intensamente, e penso mesmo que aqueles filmes com retirantes fugindo da seca são mais interessantes, bem construídos, emocionantes e relevantes que esse filme que vi no cineclube da faculdade. Vejam bem: podem não ser gênios, mas os retirantes têm uma perspectiva, uma intenção, eles quebram a circularidade da rotina e eles não aceitam ser maltratados pela seca. Isso indica resquícios de cérebro ali dentro.

Morar, por livre escolha, numa ilha sem água, e não esboçar nenhuma intenção de sair é pura estupidez.

Aí, depois de sei lá quantas horas de tortura, mas pareceram muitas, o filme acaba, eu penso que sairei de lá ferido apenas no orgulho da humanidade em geral, e com o direito de fazer exceções para os ocidentais - "ninguém é assim no Brasil", pensava meu coração bondoso - decidiram que não só o filme era digno de tomar nossas vidas: ele merecia uma discussão.

Não sei, sinceramente, se é possível discutir sobre a repetição infinita de burrice mais do que desprezá-la e partir, mas eles disseram que sim. A primeira pergunta me fez gargalhar mais que uma das cenas mais engraçadas da história*: "Alguém aqui chora no cinema?"

Mais coisas se seguiram:
"Acho muito emocionante a cena da terra absorvendo a água";
"O filme todo é uma metáfora";
"É interessante porque isso me lembrou um documentarista brasileiro que ninguém aqui deve conhecer";
"As cenas são, ao mesmo tempo, muito secas, mas muito líricas, só que de um lirismo muito discreto";

E mais meia hora de bullshit. Obviamente não comentei nada, a não ser quando um dos mais emocionados com o filme disse, num tom sério: "Eu sempre me ponho no lugar dos personagens, e acho que não conseguiria viver nessa ilha só por um motivo: não tem cinema. Acho que todo mundo aqui acharia terrível", ao que respondi que não moraria na ilha porque não tem água, e que sem cinema eu vivo tranqüilo, veja só, mas sem água fica dificil.

Se já me irritei alguma vez com um filme, e depois mais ainda com a platéia, certamente a reação de hoje foi mais intensa. Me irritei porque nem para forjar emoção esse tipo de gente - que chamarei aqui de "tipo B" - é competente. Para forjar as próprias emoções eles recorrem a métodos tão artificiais e subjetivos que me fazem ter vontade de cuspir nos seus rostos sensíveis molhados de lágrimas falsas e correr pra caatinga, onde eu cuspiria nos retirantes e de onde voltaria pra casa pra assistir aos filmes que estou baixando, que são melhores e mais inteligentes e têm personagens que não são autômatos, mas, sei lá, seres humanos.

A única comparação que minha mente fazia o tempo todo era com algum tipo de náufrago voluntário, que tinha barco, meios para sair e conhecia o mar, mas fazia questão de ficar ali, naufragado, esperando a morte chegar.

* A cena é mais ou menos assim: os pais dos meninos estão voltando da ilha vizinha com água, e um dos meninos, na ilha em que moram, está muito doente. Quando o menino saudável percebe que seus pais vêm ao longe, no mar, nota-se uma dúvida em seu olhar: "Devo gritar para avisá-los para trazer um médico ou somente pedir que venham rápido, abanando o braço como se fosse uma hélice, mas sem demonstrar sentimento algum em meu rosto?" Aí ele se lembra: "Droga, não posso falar. Não neste filme. Tenho que fazer tudo bem artificialmente, porque não posso deixar transparecer em momento algum que tenho células. Vou balançar meu braço".

Os pais, com muito esforço, aceleram ao máximo as remadas, chegando à terra poucos minutos depois. Sobem até o barraco onde moram, vêem que o filho está doente e... o pai volta remando [e aqui foi quando estourei], sozinho, para a ilha vizinha, em que existem benesses como energia, água encanada e médicos, atrás de um representante da última classe citada. Procura retardadamente pelo médico, leva-o até a ilha em que mora e, óbvio, o moleque está morto.

Dá pra morrer de gripe quando o médico mais próximo mora do outro lado do mundo. Eles deviam ter percebido que não era uma boa morar ali. Fiquei feliz quando o menino morreu, pensei que, veja só, eles perceberam a desgraça de lugar que ocupam. Mas não. Japoneses jamais entendem coisa alguma.

Sinto que muitas das coisas que me fizeram odiar o filme ainda não foram contadas, mas sinto também que jamais serão, porque, olha, este post já está maior do que eu pretendia, e daqui a pouco fica mais chato que o próprio filme.

11 outubro, 2008

04 outubro, 2008

A Crise Monetária Internacional

Hoje vi outro post dizendo que a culpa da crise é da falta de regulamentação e do excesso de crédito.

Só que é impossível que a culpa seja dos dois, aí eu fiquei triste e fiz este post.