01 setembro, 2008

Mariana Al Cagüete

Essa história de "ponha-se no lugar dele" nunca me convenceu. Dois motivos me fazem sustentar essa descrença: o primeiro, porque posso suceder nessa empreitada. O segundo porque posso falhar.

Se tiver sucesso, digamos, em me pôr como um católico nessa história da Carol Castro, assunto mais batido que bife de segunda, certamente verei seus motivos para ser contra a revista. Fúteis, tolos, falsos: motivos.

Se falhar, simplesmente sobreporei minha moral à do pobre Eurico, e tudo o que condeno continuarei a condenar - apenas com uma batina ocupando o lugar da camisa e da bermuda sobre meu corpo atlético.

Me pôr no lugar de outrem, portanto, me parece reflexão demasiado dispendiosa para retorno nulo. Prefiro procurar valores impessoais de que possamos partilhar o presbítero e eu, senão com a felicidade do desejo concedido, com a resignação de uma decisão bem tomada.

Não era assim que pensava Mariana Al Cagüete, que tinha em seu nome espelho de sua alma - como em todos os espelhos, a imagem invertida enganava, pois Mariana jamais abrira a boca para denunciar ninguém. Não de propósito. E nem isso importa em minha narrativa.

Ocorreu há alguns anos. Não tantos que me faltem dedos, nem tão poucos que me ocorra a data*. Estipulemos, porque às vezes é preferível um leve desvio à falta de informação, que há cinco anos ocorreu tudo isso que direi, na primavera de 2003.

*

Mariana era famosa em toda a Escandinávia por sua piedade, embora jamais houvesse chegado perto daquela região. Sua fama começara nas terras geladas, e talvez jamais tivesse chegado ao lugar onde viveu e nasceu ela se não a houvesse buscado eu, em viagem recente que fiz à Europa.

(Às vezes assim age o Destino, dando a nós mais de Ibsen que aos escandinavos, e a eles mais de nossos valorosos heróis. Não há que reclamar, senão contemplar passivo todas as Suas peças).

Pois bem, que volto à narrativa.

É verdade que adquiriu em vida tal fama, e também é que defendia sem remorsos assassinos, estupradores e vendedores de açaí, mas não o fazia por piedade - e eis aí a história, que começava torta, se endireitando pelos meus braços e pelo meu juízo.

A verdade é que Mariana Al Cagüete fora educada por sua avó, D. Senhorinha Inês, uma senhora de pensamento muito mais liberal do que convinha à sua época, e ainda um tanto excessiva mesmo para os dias de hoje, em que as orgias em praça pública são quase um cerimonial religioso.

Dentre as lições que lhe ensinara a avó - bordado, crochê e tricô eram estudados diariamente, e com muito mais intensidade, que matemática e letras -, havia uma em que Mariana por toda a sua vida se destacara, e nela ganharia qualquer prêmio que se estabelecesse para louvá-la. Mariana podia, mais que ninguém, pôr-se no lugar do outro (muito melhor que pôr-se no seu próprio, garota inconveniente que foi, e quando mulher ainda mais).

É dessa forma que Mariana começa a procurar desculpas para os erros do açougueiro, que mal lhe pesou a carne, o padeiro, que um pão lhe subtraiu, e o padre, que incorretamente a benzeu.

No começo por inocência, e depois por vício, Mariana se entregava à prática de se pôr onde não devia, no lugar que, por ser do próximo, por ele, e ninguén mais, devia ser ocupado.

A brincadeira de entender o açougueiro em pouco evoluiu, e já aos vinte ela procurava entender os pequenos bandidos, ladrões de galinhas. Aos vinte e três, e com mais força, começava a estudar nas páginas policiais os motivos que teriam seqüestradores e assassinos (na mesma época, não se sabe até hoje se coincidência, morreu seu avô, e sua avó sumiu).

Depois seus atos seguiram suas considerações mentais - no que reforçam a insinuação de deitei no parágrafo anterior - e ela passou a cometer abertamente pequenos furtos, seqüestros relâmpagos e, ninguém nunca descobriu, mas suspeita-se, quatro assassinatos.

Prendê-la era impossível, pois Mariana também se punha no lugar dos detetives, e se antecipava a eles, sempre conseguindo fugir. A solução do delegado foi drástica, e imprevisível mesmo para a pobre Mariana.

Com toda a cautela, consultou na biblioteca o arquivo do último ano do jornal da cidade. Decorou estilos e vícios de todos os jornalistas - lá ainda era permitido aos periodistas ter estilo, e seus vícios geralmente decorriam disso - e escreveu uma breve nota.

No dia seguinte, pela manhã, enviou ao jornal sua nota, seguida de recomendação de que se publicasse no jornal, na página ..., do caderno ..., em tamanho grande, acompanhada da foto anexa, sob a assinatura do jornalista ..., ainda na edição da tarde.

Quando voltou da banca naquele dia, Mariana leu a nota do delegado. Na página, ao lado de uma figura feminina, a manchete "Suicídio em ... Peritos terntam descobrir os motivos".

Foi a última vez em que ela se pôs no lugar do próximo.
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*A idéia original era "Não tantos que me faltem dedos, nem tão poucos que sobrem ao Lula", mas piadas com o presidente, me parece, perderam a graça semana passada (embora eu ainda desenhe um sorriso de mau-gosto pra minha própria piadinha). Outro motivo é que eu não queria eternizar o Lula num conto meu.

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