Ultimamente, não sei porque - talvez por uma maturidade que eu esperava não chegasse nunca - tenho reparado demais em detalhes que antes não me incomodavam muito. Percebi isso quando o tradutor de Dom Quixote o chamou de "bizarro" quando devia ter dito "elegante" e me doeu um pouco. Depois fui ler o primeiro capítulo do E-book de Reparação, do Ian McEwan, que o Ed me mandou, e vi que a linguagem tinha um efeito que ia além das palavras, como se fosse o conjunto que me afetasse, não apenas as palavras, e eu gostei, foi bonito, mas senti que aquilo me dava mais responsabilidade do que eu queria.
Agora estou com medo de abrir um livro e sair ferido mais pela aparência dele que pelo que conta, a história, e isso parece tão errado pra mim que não sei se eu conseguirei achar um dia o equilíbrio correto. É um choque quando percebemos que cada frase agora vai ser analisada, mesmo contra a nossa vontade, e muito menos livros serão bons. Sinto que se eu for reler qualquer livro infantil que me agradou quando era menino não ia gostar, talvez achasse cafona O Pequeno Príncipe, e isso me afligiu e me fez pensar se era certo ver as coisas tão sob a influência da estética.
Dizem que Nabokov desenvolveu o melhor estilo de todos os escritores da história, e nunca o li justamente por isso: ninguém comenta jamais o que Nabokov diz, apenas o como diz, e nunca me valeu muito conhecer o melhor estilista da linguagem - até porque, bem, costumo ler, por preguiça, em Português, em que algum bom estilo, pra ser mantido, precisa de um grande tradutor, como o Eça das Minas do Rei Salomão. Achava que o Português, por mais rígido que o inglês, por exemplo, dava pouca abertura para o estilo, e sempre considerava isso uma vantagem, porque a qualidade se evidenciaria mais pelo conteúdo que pela imagem.
Agora, entretanto, serei obrigado a dedicar minha vida a ler Nabokov, e apenas Nabokov, e reler, e reler, e reler, até decorar as passagens mais belas, mesmo que eu não veja conteúdo no que ele diz - duvido que não veja, certamente o conteúdo é bom, mas isso não vai me importar mais se me agrava a afetação. Passarei por passagens dramáticas como pelas partes felizes - sem esboçar sorriso ou prender a garganta para engolir o choro -, e, céus, como sou contra isso!
Já me vejo também jogando fora todos os livros da minha vida para dar espaço a novas edições de Lolita - "Traduzido da tradução francesa", "Traduzido da tradução alemã da tradução francesa" etc., como quem usa o tradutor do google, mas para melhorar - não acho que traduzir um livro de uma outra tradução o piorará sempre; é possível que a primeira tradução melhore o livro, e a tradução dela pode dar um livro ainda melhor. E assim eu brincarei: meu único divertimento quando meu mal estiver em grau máximo, quando me acometerem desmaios ao passar por algo errado ou feio na leitura. E depois eu ficarei reescrevendo as passagens em que Nabokov tenha errado, tentando melhorar o estilo onde falhar (longe de mim achar que tenho bom estilo, mas é fácil melhorar os livros dos outros. Melhorar um Nabokov é mais fácil, sem dúvida, que escrever como ele). Quando minha brincadeira estiver pronta eu não terei nada a fazer, e poderei morrer em paz.
Como quero adiar minha morte ao máximo - e ela só vai acontecer depois que eu passar por todos esses estágios -, tentarei adiar por um tempo a tentação de ler Nabokov, de entrar em contato com "o melhor dos estilos", para evitar vícios que me possam acometer. Até lá, leio minha tradução errada de Dom Quixote, tendo pequenas pontadas quando algo sai da linha, mas aproveitando enquanto ainda sou capaz de apreciar a história. Ah, e que história! Agora Dom Quixote decidiu ficar louco pra que Dulcinéia se apiede dele e o aceite. Ah, que maravilha! Ah, que livro! Talvez eu ainda tenha cura.
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