13 julho, 2007

O vice-escolhido (or The chosen two)

I.

Marcos Sant'Ana nasceu com um propósito muito pouco especial: ele era o vice-escolhido para proteger a vida da Rainha Neuma XXXI (Neuma é um nome muito comum na terra de Marcos). Durante toda a história os vice-escolhidos existiram, e você nunca ouviu falar deles porque eles nunca foram necessários. A única vez em que se precisou de um deles foi numa tarde de primavera, no reinado de Neuma IX, a Comensal dos Mortos, e sua função foi apenas a de retirar do jardim as margaridas que floresciam, porque Neuma IX era bastante alérgica a margaridas e seus espirros constantes a estavam conduzindo aos poucos à morte por estafa e constrangendo todos os esqueletos que se sentavam à mesa com ela (Na verdade, os convidados de Neuma IX eram as cinco primeiras Neumas, um pretexto para repelir os comensais vivos e economizar na conta do açougue no fim do mês).

Infelizmente os feitos desse vice-escolhido foram deixados em segundo plano graças aos feitos do Escolhido, que naquele momento lutava contra uma hidra de duzentos metros de altura - o que, medidos os fatos, não adiantaria muito se a rainha morresse de estafa por causa das margaridas, mas o tamanho da missão do Escolhido, comparada à de seu substituto, acabou ofuscando sua tarefa que, de fato, teve mais relevância para a história desse país - que, por sinal, chama-se justamente País. Nunca mais se contou a história desse valente vice-escolhido, que lutou contra as margaridas pela vida da rainha, a não ser nos círculos dos vice-escolhidos, que se reuniam todas as semanas para relatar seus feitos (ou a preparação para fazer algo grande. Todos os vice-escolhidos treinavam todos os dias enquanto torciam para que o acaso tirasse o Escolhido de sua função por qualquer motivo fútil - uma gripe, um resfriado, dengue... menos a morte, caso em que haveria substituição imediata do Escolhido por outro Escolhido, ficando o vice-escolhido sem funcionalidade - para que pudessem pôr em ação seus músculos bem treinados e sua mente rápida e sagaz em defesa de seu protegido). Todos se preparavam para fazer algo grande, menos Marcos. E, como sempre acontece nos romances, Marcos foi o único deles a quem coube uma missão importante. Mas isso vem depois. Primeiro os bois, gordos, feios, malhados e sujos; depois a carroça, abarrotada de tecidos e pedras preciosas. A missão que Marcos cumpriu vem depois da explicação de como Marcos vivia.

Uma pequena cabana, provida, como de regra, pelo Estado, era o abrigo de Marcos. Pequena de fato, e não por enfeites lingüísticos: doze metros quadrados. Mas Marcos estava bem em sua cabana de dois por seis e sequer invejava a vida de Anthério, o Escolhido, a não ser pela inicial maiúscula de seu cargo e o banheiro dentro da casa - Marcos odiava ter que aparecer para todo mundo quando a natureza chamava e tentava só usar o banheiro uma vez por dia, na hora do almoço, quando todos estivessem ocupados demais com fígados e medalhões de frango e bacon. A casa de Anthério era de alvenaria, uma fachada larga com um frontão em semi-círculo que Marcos considerava extremamente brega. A cabana de Marcos era como toda cabana deve ser, só que retangular. Anthério tinha um jardim com tulipas e rosas, mas no quintal de Marcos não crescia nem grama. Em compensação, o trabalho de algum passarinho centenas de anos atrás rendeu a Marcos um enorme pinheiro, que cobria de sombras sua cabana e a terra seca e vermelha do chão além da sua porta. Anthério, apesar de Escolhido, era invejoso, e plantou em seu jardim fértil dezenas de pinheirinhos, que em duzentos ou trezentos anos seriam tão frondosos quanto o de Marcos. Até lá, o vice-escolhido se contentava com sua árvore singular.

O motivo da tranqüilidade de Marcos com seu corpo e sua mente era graças a Anthério, e todos os dias Marcos agradecia secretamente a ele por nunca adoecer, nunca espirrar, sequer. Nunca falhar. Naturalmente Marcos nunca expunha sua gratidão, porque seu orgulho e sua honra sairiam feridos desse elogio. Marcos tinha uma rede em sua cabana, que era pendurada diagonalmente, cobrindo três metros do corte de sua casa (que, é óbvio, não tinha paredes internas), e nela passava todas as manhãs e todas as tardes, sempre com um pouco dos tira-gostos que os cidadãos ofertavam à Sua Majestade, a Rainha Neuma, e alguma bebida, geralmente vodka e, mais raramente, uísque. Sobre as coxas havia sempre um livro pousado, aberto em qualquer página aleatória, mas sempre anterior à página marcada pelo clipe prateado que marcava o ponto que Marcos já alcançara em sua leitura. Enquanto bebia e comia aperitivos, Marcos relia trechos interessantes do romance que sempre adiantaria à noite, depois de chegar da Taverna do Moisés, o judeu da cidade, o único que vendia fiado. Antes de ser chamado a cumprir a missão que será narrada aqui Marcos lia um romance inédito de Daniel Defoe, que era um vice-escolhido como Marcos, relapso, mas, como todos os outros, nunca foi chamado a trabalhar e foi lembrado apenas por seus romances e contos. Marcos só ia às reuniões dos vice-escolhidos quando Defoe combinava de ir com ele, para não ficar monótono demais, e nessas reuniões o inglês passava a Marcos trechos de seus novos escritos.

Esse livro era especialmente bom: falava da história de uma moça, ainda sem nome, que viajava o mundo vendendo cocadas, mas que, por vender uma cocada sem leite condensado como cocada de leite condensado, foi presa na Arábia e transformada em escrava por um mouro, que se apaixonou por ela depois de algum tempo. Ela era casta e tentava de toda forma fugir dos braços desse mouro, até porque ele tinha piercings e ela nunca concordou que piercings fossem bonitos - "a não ser na sobrancelha", dizia - e porque sua criação puritana não permitiria que ela se relacionasse com um muçulmano. O amor dele por ela era tão grande que ele se livrou dos piercings e se converteu ao cristianismo. Entretanto, como não entendia muito bem das religiões ocidentais, escolheu o catolicismo como religião a seguir. Uma noite ela preparou tudo para fugir, embriagou o mouro e... a releitura de Marcos foi interrompida por batidas desesperadas na sua porta.

- Seu Marcos, seu Marcos!, gritava a voz já rouca do outro lado, como quem gritasse a quinze minutos.

- Que foi, homem?, perguntou Marcos enquanto abria a porta.

- Estou gritando a quinze minutos! Seu Anthério renunciou!

- Ah, desculpe, eu estava... me exercitando. Mas que você disse que o Anthério fez?

- Renunciou.

Marcos ficou branco. Depois roxo. Aos poucos recobrou sua cor natural, que fica entre o rosa e o amarelo, depois de passar por tons azulados e vermelhos. Ninguém jamais havia renunciado ao cargo de Escolhido e a renúncia não era um caso previsto no regulamento para a contratação de um novo Escolhido. O vice, portanto, deveria ser efetivado no cargo, embora não deixasse de ser vice. Isso queria dizer que Marcos ia precisar trabalhar sem, no entanto, melhorar de condições. Sua cabana seria a mesma, seu banheiro continuaria igual, mas agora ele devia proteger efetivamente a rainha. Ele precisaria lutar contra os inimigos que aparecessem e nem mesmo ia ganhar o bastante para comprar mais uísque. E o pior: Anthério continuaria com todas as regalias de um Escolhido, porque ele nascera com esses direitos. Parece que durante muito tempo Anthério vinha estudando uma forma de se livrar do trabalho sem perder seus direitos, e essa brecha na legislação permitiu que seus planos se concretizassem. Se antes Marcos agredecia por Anthério ser tão perfeito, agora não havia quem ele odiasse mais profundamente, e as suas pupilas se contraíam apenas de começarem a pronunciar seu nome - o que quer dizer que sempre que alguém falasse "antena", "antes" ou "antílope" suas pupilas se contraíam; mas logo relaxavam ao perceber o fim da palavra.

- E isso não é nada! Ele renunciou justo no mês da Rinha Anual de Dragões, e o reino está sem nenhum domador. A rainha espera que o senhor, como vice-escolhido, seja capaz domá-los caso decidam cuspir fogo por aí como ano passado.

- Er, eu dou um jeito, disse Marcos, que não queria parecer despreparado. - Mas precisarei de bastante queijo emental pra me preparar.

- Hum, são exigências ou só sugestões?

- Longe de mim exigir alguma coisa da Rainha! É só uma sugestão, mas é necessário para que o controle dos dragões seja feito com a maior eficiência... dragões adoram hálito de emental. Se vier misturado com brie, então...

A conversa de Marcos foi tão convincente que em poucas horas ele tinha um fondue de seis queijos o esperando na sua porta e pães de quatro tipos para acompanhar - na verdade Marcos pediu cinco tipos de pães, mas o pão de cevada estava em falta desde que o País começou uma guerra contra seu vizinho, Übër, a terra dos tremas e da cevada.

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