Tudo o que fazem pra elas, por melhor que seja, sofre preconceito. "É infantil", diz a alma gorda e soberba de um senhor de colete muito apertado sobre a barriga proeminente que gasta seus dias lendo coisas sérias. A literatura infantil é vista como o menor dos gêneros literários. Tom Sawyer, Alice, algumas fábulas e muitos dos outros livros infantis reconhecidos como "bons" ou "geniais" são logo tirados da classificação infantil (talvez não o Pequeno Príncipe, mas basta olhar para os leitores de Alice dizendo que "Alice é, na verdade, o relato de um tema sério, uma viagem de LSD, o efeito do lisérgico puro e indomado" e notar que não há mentira no que digo. Existe, é certo, uma tentativa dessas almas gordas e soberbas de dizer que tudo o que é bom é material adulto).
Isso deve acontecer por causa da burrice pressuposta das crianças. Ninguém acha que as crianças são capazes de ir além de "era uma vez" e "foram felizes para sempre". Mas, surpreenda-se, alma gorda e soberba, elas são. Crianças entendem uma história bem-feita tão bem quanto qualquer outra pessoa. Crianças têm, inclusive, senso crítico, julgam as aventuras que lêem, julgam as histórias que lhes contam, geralmente, com mais precisão que os senhores de colete apertado sobre a enorme barriga flácida que só lêem literatura séria e preferem dizer que "a estética adotada pelo narrador é 'anacrônica'" ou algo assim a dizer que "tal personagem é chato", como faria corretamente uma criança.
Ninguém, repito, ninguém, repito de novo, ningúem (é divertido repetir, repetir, repetir) pode transformar Tom Sawyer em livro adulto. Tom Sawyer é um livro infantil por excelência: crianças brincando, aventuras e final feliz. Alice é um elogio da imaginação, e uma criança entende muito melhor que um senhor gordo a intenção da história de Alice, que não é mais que divertir.
O mesmo vale para o cinema, mas aqui não se disputa se algo é ou não infantil, tudo o que se faz é dizer que "é um filme bobo, infantil" para todos os desenhos animados e filmes cujo personagem principal é uma criança. O Rei Leão tem uma história muito melhor que a maioria dos filmes "para adultos" - alguém pode dizer que discorda? Bem, pode, e eu não impedirei, mas quem disser estará errado. Alguns filmes infantis conseguem agradar tanto a adultos quanto a crianças, o que não equivale a dizer que, por isso, o filme deixa de ser infantil. Alguns filmes tem "significados ocultos" que apenas os adultos entendem, mas a trama superficial é infantil. E o que importa é a trama superficial, não os sentidos enterrados no filme (até porque, geralmente, muitos deles são escavados quando sequer existem).
O que eu quero com este post, você me pergunta. Respondo: quero que deixem as crianças terem coisas de qualidade pra si, que elas não tenham que "invadir o mundo adulto" pra buscar Alice no País das Maravilhas na última prateleira da estante, ao lado de Decamerão, tendo que pedir pezinho pro irmão um ano mais velho (e por isso mais forte) e correndo o risco de cair e ralar o joelho - já cicatrizada a ferida feita na aula de educação física. Ou ter que arrastar uma pesada escadinha de cinco degraus da despensa até a biblioteca, andar acima, só pra pegar alguns contos dos Irmãos Grimm. Sim, criança sabe o que é morte, criança sabe o que é vingança, entende a maldade, se diverte com a loucura, gosta desses temas e é sádico impedi-las de ler algo porque eles estão lá.
Isso tudo porque outro dia vi um dos livros de que me lembro ter gostado mais na minha infância, "O Caso da Estranha Fotografia", de Stella Carr, e, como queria dizer aqui pra que todos leiam, precisei antes defender a literatura infantil. É um livro infantil, bastante infantil, com uma quadrilha internacional, aventuras no mar e investigações feitas por crianças. Duvido que se eu o relesse hoje não gostaria. Duvido que achasse "infantil demais", porque acredito que quanto mais infantil, se conseguir não ser retardado, melhor o livro - tem mais imaginação, mais aventura, mais leveza, linguagem mais rápida. E, entretanto, parece que as pessoas buscam sempre por coisas mais profundas, mais difíceis, mais "meu Deus do céu, este livro mudou minha forma de encarar a minha vida gorda e flácida e acabou me deprimindo".
(Há, inclusive, livros infantis bastante tristes, como "Papai não é perfeito", a história de um menino cujo pai, canhoto, perdeu os movimentos de todo o lado esquerdo do corpo. Li esse livro logo depois de ler "O Caso da Estranha Fotografia" e lembro que não gostei muito. Agora, lendo uma sinopse da FTD, vi que eles disseram que o pai de Lucas "é portador de deficiência física". Absurdo terem feito isso quando o título é tão claro: o pai de Lucas tem um defeito, uma imperfeição. Nenhuma criança leria algo sobre "portadores de deficiência física", porque crianças têm outra vantagem sobre os adultos: são diretas, não gostam de firulas ou de suavizações imbecis da realidade).
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