09 maio, 2008

Primeiro pedaço de conto ainda não titulado

Introdução

Nasci aos doze anos de minha mãe, saído de uma barriga que em largura excedia o comprimento da pobre mulher. Mamãe era mulher de tanta fibra que esta, entrando-lhe pela cabeça, atrofiou-lhe o cérebro e a capacidade de raciocínio. Toda a vida eu segui os passos de uma mulher que, se não pensava antes de agir, agia sempre com tanta força que sua vontade se impunha sobre a dos intelectuais que deixavam seus neurônios invadirem seus músculos de tal forma que perdiam a capacidade motora por falta de mielina. Mamãe, metro e meio de altura, desempregada, sempre nos criou e educou para o crime, profissão que sigo hoje sem receio, mas com o cuidado para que meu ímpeto não se transforme em pecado ou prisão e para que meu cérebro não descambe para a consciência pesada ou o respeito às normas. Há uma brecha entre as leis humanas e as leis divinas, e me entranho nelas, usando de uma para me desculpar da outra. Se peco, nunca é cometendo crime. Se cometo crime, estou certo que não é pecado.

Sou naturalmente muito ético: as regras, para mim, devem ser seguidas. As leis da natureza não podem ser desobedecidas, a menos que por mim mesmo. Ajo como se as houvesse criado, e desde sempre acredito que, se não vôo, é por alguma injustiça que tornou-me impossível burlar a lei da gravidade - a única que Deus permite a todos que burlem, por saber que ninguém o fará. Ainda assim, mesmo não voando, flutuo de telhado em telhado nesta pequena cidade onde nasci, por onde teço minha modesta teia de pecados. Sempre, no entanto, com o perdão divino, que é justo, ou o da justiça, que nem sempre.

Tem uns poucos milhares de habitantes e casas térreas próximas umas das outras. São fáceis de invadir, e sempre têm muita coisa jogada sobre a mesa: jóias, relógios, contas a pagar e a despreocupação da classe média que tem débito automático em todos os boletos. Os telhados são quase todos sólidos como se fossem o próprio chão, e é possível sapatear sobre eles tanto quanto em um palco que dentro das casas não se ouve nada, e fora dela nada se vê - e, com os sapatos que uso, pouco se ouve. Mesmo eu, com ouvidos potentes que tenho, não identifico bem quando estou andando e quando estou parado. É mais fácil ouvir minha respiração que meu andar, devo dizer sem modéstia. Minha inspiração é mais pesada que meu corpo, e a cada vez que sorvo o ar sinto meus pulmões querendo me levar aos céus, impedidos apenas pelo peso de meus ossos.

Meus olhos, largos, são fracos na dianteira e quase impotentes na laterais. Meus ouvidos, por outro lado, jamais viram par em maestro algum. Cada folha que farfalha faz um som único, e consigo transferir minha atenção de uma por uma, até que escute aquela que, pelo barulho que causa a tocar o chão, seja a mais verde dentre elas. Numa multidão, escolho dentre todas as solas de sapatos as mais novas pelo som que provocam no solo, ou as mais nobres, de couro, distinguindo-se das borrachas de sapatos mais simples. Minhas vítimas nunca se vestem mal, e sei disso não porque as enxergo, mas porque ouço o som do veludo que se esfrega em si mesmo quando elas balançam os braços para caminhar e roçam o cotovelo nas costelas.

Para fugir ao mesmo tempo da ira de Deus e da prisão, tento nunca roubar ninguém. Apenas furto. Não há nada contra o furto nas tábuas sagradas, segundo minha versão da bíblia. Confesso-me às sextas, com um padre que se horroriza com meus atos, mas é gentil na hora da pena, sempre atribuída pela única infração em que recaio infinitamente, a sétima. Idoso, o padre parece adepto de idéias inovadoras que o levam, em arrependimento, a flagelar-se com chicotes que marcam seu rosto tão intensamente que algumas cicatrizes são visíveis mesmo através da semi-escuridão que passa pela treliça do confessionário. Seu crime, acredito, é contra Deus. Os meus são contra os homens. Tenho vantagem no julgamento final.

Meu paladar é apurado para os amargos, defino um a um os sabores de metade dos venenos, e de alguma forma sou imune a eles. Para matar-me pela boca, entretanto, basta boa dosagem de doces. A diabetes me ataca, e meu apetite não se sacia antes de meu corpo. Morte feliz e sagrada é a morte de um diabético pelo açúcar. Aqueles que evitam a comida são covardes, e devem ser punidos com o inferno, onde estão todos os covardes e todos os valentes. A terra e o céu são morada dos cautelosos.

Mas, de todos os meus males, o pior e indesculpável é a incapacidade de narrar linearmente e com qualidade minha história, que nestas páginas se desenvolverá conforme permitir minha memória, maior de minhas qualidades.

Ei-los, enumerados, fracos e fortes de um bandido que escreve e tenta provar que estes, ao contrário das lendas que ficaram sobre mim, superam aqueles não só em número, mas em qualidade e paixão com que são explorados.

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