13 maio, 2008

Sempre que vejo notícias de invasões de universidades públicas e reitorias, penso se não seria mais útil se ninguém desse a mínima e aquilo tudo virasse abrigo e terra pros desabrigados e sem-terra. Até um estudante comunista sujo vale mais que toda a produção acadêmica brasileira - ao menos eles são vivos, embora sibamos que vão morrer de difteria em um ou dois anos. Os sem-teto, então, nem se fala.

Além disso, no caso dos sem-teto (que vi tinham invadido da UFC), não sei até que ponto a supérflua educação - especialmente superior - tem (ou deve ter) prioridade sobre a necessária moradia. Ninguém, nem nada, existe sem lugar, sem ocupar um espaço, e, sem educação superior, o mundo fica melhor a cada dia e pode-se, na pior das hipóteses, semi-existir, que é o que fazem hoje os acadêmicos.

Os críticos usuais do Estado, entretanto, adoram criticar aqueles que agem diretamente contra ele - concedo, é uma posição mais limpa a de eterna oposição, a do não me misturo, mas entre ficar limpo e me jogar na lama com a Mulher Samambaia, minha decisão está tomada (pelo menos no blog, que na vida é a preguiça, e não tem Samambaias em Recife, believe me fellas) - geralmente por conta de os invasores usarem uniformes vermelhos e o pessoal que às vezes é coerente escrevendo não gosta muito desse cor, lembra sangue, e mancha de sangua não sai de jeito nenhum. Para mim, o vermelho tem tons mais puros que o do sangue, e uma papoula vai bem no chá, vocês sabem. Comunista? Se for, com a convicção de estar certo e a certeza de ser convicto, e de achar o Estado mais incorreto que qualquer um que o defenda vez em quando.
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O único tipo de gente que consigo imaginar discordando de mim é uma colega de faculdade que, expondo os defeitos do bairro mais pobre de Recife - renda média de menos de cem reais, zero de saneamento, dentre milhões de números - destacou como o mais alarmante a alta taxa de analfabetismo. Nojo.

Mais ou menos em resposta a ela, escrevi esta crônica, para outra disciplina, um semestre depois (uns 8 meses atrás):

A História de Cirilo Matos (ou A importância de ler bastante)

Cirilo Matos tem doze anos e seu passatempo predileto é ler. “Que belo!”, diz o leitor entusiasta da educação, “Que belo!” Morador da favela do Coque, tem acesso a muitos livros que a Biblioteca Popular do bairro disponibiliza. Amante de Machado de Assis, já por quatro vezes se aninhou nos braços de Capitu pelas cento e poucas páginas de Dom Casmurro.

Cirilo largou o trabalho pela leitura. Muitos Quintanas e Bandeiras entraram pela porta de sua casa. Antes entravam chicletes para ser vendidos dentro de ônibus. “Que belo!”, pensa novamente o leitor desavisado. Mas o pai de Cirilo não acha nada disso belo. Com o dinheiro que ganhava no trabalho o menino era responsável pelas economias da família. O pai de Cirilo não ganha o bastante para fazer sobras, tudo é gasto com leite e pão, e o sonho de um dia ter uma casinha própria foi relegado pela vontade de Cirilo de ler bastante, até a vista cansar.

Cirilo não começou a ler à toa. Disseram que a educação é o melhor caminho para deixar de ser pobre. Ah, grande futuro terá Cirilo, se estiver vivo até lá. No Coque às vezes não se chega a conhecer o futuro. Cirilo quer ler pra que seus filhos não vivam onde ele vive e tenham a certeza de chegar aos trinta. Que não vejam as balas perdidas que ele viu entrar quatro vezes quarto adentro, e Cirilo se esbalda nas páginas amareladas de um livro qualquer.

Ele viu seu pai adoecer. Foi triste ir à biblioteca enquanto o pai gemia de dor, mas Cirilo tem um compromisso sério com o futuro. Terá uma família a sustentar, precisa pensar bem nisso. “As gerações passadas não importam como as futuras”, pensa, esquecendo que a geração que o criou é real e que a que ele criará ainda não existe. Mas sua mente é muito fantasiosa, efeito dos romances que devora sem cansar, e o futuro pra ele está tão desenhado quanto o passado, com cores muito mais brilhantes

Aos doze, Cirilo ainda não conhece seu futuro. Eu conheço. Com quarenta anos ele será o morador mais culto e pobre do Coque, mas insistirá em ler cada vez mais, esperando que o dinheiro da leitura chegue um dia. Trabalha apenas meio período e dedica o resto do dia a ler. Com oitenta anos Cirilo morrerá sem jamais enxergar um centavo por todos os livros que devorou. Culto, pobre e solteiro, ninguém vai chorar em seu velório. Pelo menos Cirilo não deixará a ninguém o legado de sua miséria.

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Eu jamais teria transcrito essa crônica aqui se não fosse o fato de, dias atrás, uma outra colega, também fundadora da biblioteca do Coque e a quem sempre julguei tão porta quanto a primeira, ter vindo me dizer, sem menções a nada, completamente aleatória, assim que me viu, que eu estava certo quando a escrevi, e que a biblioteca do Coque parecia não fazer mais tanto sentido. E pela primeira vez eu descobri como é bom doutrinar as pessoas pro caminho certo. Agora falta ensiná-los a coçar minhas costas.

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