14 maio, 2008

As cabeças trocadas

Toda vez que leio um romance ambientado na Índia, ou com toques de filosofia indiana e ascetismo, como este As Cabeças Trocadas, do Mann, que li ontem, percebo que, quando saio de casa, todas as cores nas ruas estão mais opacas, e até o amarelo vibrante do Posto Ipiranga na esquina de casa me lembra o fosco de um ocre pálido. Pode ser, sim, que isso se deva ao ambiente meio semi-árido que minha cabeça deve simular, tendo eu nascido onde a terra e as plantas são todas descoloridas.

Mas acredito que tem outro motivo, bem menos naturalista - até porque nunca convivi com plantas secas, apesar de próximo a elas, e o brilho sempre foi forte no reflexo do Sol no São Francisco. Acredito que as cores do mundo somem depois que eu vejo cores mais fortes nos romances, como o sangue de Nanda e Shridaman esguichado no templo.

Aliás, motivo maior deve ser o fato de que as cores são irrelevantes quando leio esse tipo de romance, e, embora o ambiente seja parecido com o que deve ser o semi-árido, ou antes, deva parecer com o que é o semi-árido, os personagens parecem não ligar pra isso, nunca, e a seca é suprimida pelo tom calmo - sobretudo calmo - e discreto assumido pelos narradores, Mann ou Hesse ou quem quer que seja.

E o romance acaba sem de fato ir embora, fica guardado em mim enquanto eu caminho ao mercado pra comprar leite. Na volta, as cores voltavam aos poucos a ter brilho. O brilho que vem com todo esquecimento.
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Sentimento oposto a esse foi terminar Freddy and Fredericka. O mundo assumia mais cores - na verdade, mais brilho e contraste - que de fato tinha - e falo, de fato, de situações físicas, não de metáforas, quando me refiro a brilho e contraste. Coisa de retina, não de alma. O mundo fica, sim, mais bonito quando se termina Freddy e Fredericka. Bonito a ponto de esquecermos as pessoas ou que há pessoas nele. Quando terminamos As Cabeças Trocadas o mundo é esquecido e as pessoas nos importam mais. Em ambos os casos não somos mais só nós mesmos.

Acho que o romance ideal é assim, mexe com suas noções, balança sem destruí-las, e, depois de um tempo, você as tem de volta, com algo a mais ou a menos, mas de forma muito discreta, muito delicada, você só sente que algo se alterou de vez em quando, e que foi suave e não doeu. Qualquer mudança dolorida é castigo, não benção. E Thomas Mann nos abençoa com sua alma gay e atéia, embora Helprin esteja lá evitando que essas influências negativas nos atinjam.

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