Vou contar a minha história, que vocês chamarão de banal ou vão dizer que não é digna de uma narração, por comum ou vulgar. Sou indiferente.
Eu nunca tinha sentido tanta fome na vida. Comia de três em três horas, e agora percebera que o sol estava a pino na primeira vez que abri o olho naquele dia. "Pelo menos dezoito horas de sono", calculava. Para mim, aliás, parecia que havia já três dias que não punha nada na boca. Os lábios estavam secos e o estômago se me contraia na barriga. Sentia o peso do terno sobre o peito e tinha dificuldade de respirar - "então fui dormir de terno depois da festa?", pensava. Lá fora tinha um barulho cansativo, constante, um burburinho que eu não conseguia bem identificar, mas o cheiro era de canapés. Senti uma vontade incrível de me levantar, mas parece que a fome me impedia de fazer qualquer movimento. Tentei gritar, pedir para que pusessem qualquer coisa na minha boca - minha mulher sabe o quanto eu gosto de canapés, deveria vir me servir um - mas o som não me saia da boca.
Percebam que eu poderia contar essa história de uma forma terrível, como se travasse uma luta contra mim mesmo, como se meu corpo desobedecesse minha mente, mas trata-se apenas de fome, e fome é algo por que todos passam um dia. Resolvi contar o caso dessa fome porque era muito intensa, e não porque um fato extraordinário me ocorria.
Eu continuei pensando em comer aqueles canapés, mas não era firme o bastante pra me levantar e comer, nem tinha força o bastante pra gritar pela Marta (minha mulher) ou pela Márcia (minha filha). Talvez eu conseguisse chamar o Zé Afonso, meu filho, pelo prenome, só por "Zé". Exigia pouco esforço e talvez tivesse efeito. Eu ia tentar, mas de súbito me lembrei de não estar falando com ele desde que ele pegou meu carro escondido para beber, bateu com ele e morreu. Agora ele estava em casa, de castigo no porão, desde pouco antes de morrer, enquanto convalescia. Só seria enterrado dali a três meses, quando a batida completasse meio ano. Sempre me orgulhei de ser um pai severo em qualquer situação, e uma morte não poderia atrapalhar a minha rigidez, se fosse ocasionada por culpa própria. Os médicos atribuem a morte dele a uma infecção contraída no porão, por causa da falta de limpeza por lá. Minha mulher insistia em me culpar por isso, mas eu trabalhava e ela cuidava da casa.
Um dia ela assumiu a culpa que negava - e que era minha, também, mas que em mim não pesava - e começou a levar lanches, escondida, pro Zé Afonso, já morto, como oferendas ao defunto. Eu fingia não ver, mas ela sabia que eu via. Era um trato silencioso que tínhamos, mas de que nossos filhos não desconfiavam. Só parou quando se convenceu de que era certo que isso acontecesse, porque tudo era conseqüência imediata do roubo do meu carro. Marta deu-me um beijo e disse "obrigada", mas nunca disse por que agradecia. Suponho que por eu tê-la livrado da culpa, de algum modo. Meu gasto com o Zé Afonso não tinha diminuído desde sua morte, e pela primeira vez eu percebi que poderia economizar alguma coisa pra comprar a minha moto dos sonhos - uma seiscentas cilindradas, da Honda -, e aquele pensamento me fez ficar sadicamente feliz com a morte do meu filho.
Desisti, portanto, de chamar meu filho. Fiquei deitado, esperando que alguma coisa importante acontecesse. Aconteceu. Minha mulher entrou no quarto, "Antero!" (na verdade, ela me chamou por um apelido que não cabe no corpo deste texto, por pessoal e constrangedor). Sem resposta. "Anteerooo!", mas nada. Eu tentava falar, mas não conseguia. Ela se desesperou. Começou a pensar que eu estava morto, pôs o ouvido sobre meu peito e não ouviu nada - o colete sufocava o meu coração, de forma que ele batia mais fraco, e o peso e a espessura do terno abafavam o Tum-Tum que deveria sair do meu peito. O pulso estava fraco o bastante para não ser sentido e a respiração lenta e quase imperceptível. "Está morto!", gritou ela chorando, "Tão jovem e... morto!". E eu nem era tão jovem, já passara dos quarenta. E estava vivo: eu respirava com dificuldades, meu coração batia fracamente e o pulso era imperceptível para qualquer um, mas mortos não sentem fome, eis um axioma universal da medicina, provado empiricamente pelo meu filho, que nunca comeu nada do que a mãe levava para ele no porão.
A reação imediata de Marta foi expulsar as visitas de casa, com algum pretexto, e quando todos saíram, em vez de chamar um médico, ela acorreu ao meu filho, louca para dar a ele um enterro digno. Porque assim são as mulheres: basta que você vire as costas um pouco ou que achem que você está morto e elas já teimam em te desobedecer, como se Deus tivesse dado também a elas o livre arbítrio. Ligou para a funerária, encomendou um caixão de luxo - enquanto isso, o cheiro dos canapés invadia fortemente o quarto, agora de portas abertas, desde que Marta saiu desesperada atrás do telefone sem fio, que nunca estava no gancho.
O cheiro era tão forte e tão atraente que eu consegui juntar forças para me livrar do terno e do colete, ficando apenas com as calças, as meias e a camisa de botões. Algum tempo depois, recuperada a capacidade plena de respiração, levantei-me para buscar um canapé. Andava como um morto-vivo deveria andar, se existisse. Acho que Marta descobriu que existem naquele instante: ao me ver, caiu dura no chão, o rosto deformado de susto, o coração parado. Na hora não dei muita importância, o canapé me era mais importante. Comi três até achar o de cogumelo, seção em que parei para comer uns oito ou dez. Depois comi alguns de camarão. Satisfeito o estômago, busquei uma cerveja, mas só tinha água e Coca-cola na mesa. "Que tipo de recepção é essa?", pensei, enquanto me servia de Coca. Feliz, lembrei finalmente de coisas menos importantes, como Marta.
Pensei por não mais que trinta segundos no que fazer e me decidi. Levei Marta para o porão, depois de me assegurar que ela estava morta e que, portanto, não me poderia matar de susto como eu fizera com ela. Ela ficou trancada por três meses, até hoje, dia em que enterro juntos minha esposa e meu filho mais velho. Obrigado a todos por virem ao enterro, os canapés de cogumelo estão à esquerda, os de camarão no meio. Os outros não valem a pena. Sei porque provei todos naquela recepção de que vocês foram expulsos, lá em casa.
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